Conheci Dona Ivete há mais ou menos 4 anos. Ela era a mãe do meu marido, uma senhora vinda do sul do Brasil, viúva do Sr. Joaquim, um divertido senhor português, que, segundo dizem, teria adorado me conhecer.

Naquela época ela já estava bem esquecida, mal falava, mas sua pressão era ótima e seus exames não acusavam nada. Me lembro que, sempre que eu chegava em sua casa ao lado de seu filho, ela me encarava com ares de:

– Quem é essa mulher que está agarrando o meu tesouro?

Tentava explicar que as minhas intenções eram as melhores, prometia até me casar, mas ela nem ligava. Olhava para ele como se quisesse alertá-lo e me encarava de volta. Mas, por tudo que seu filho, hoje meu marido, já havia me contado dela, sabia que Dona Ivete era uma grande mulher. Doce, elegante, boa mãe… Vaidosa ela ainda era, não dispensava o esmalte e o batom e gostava de ter as suas belas madeixas brancas penteadas. Uma grande mulher que tinha criado um grande homem. Me sentia grata por ela existir.

No ano passado Dona Ivete faleceu. Já estava bem velhinha e um tanto debilitada nos últimos meses. Um dia, ela começou a sofrer por falta de ar e a médica disse que era questão de dias. Resolvemos levá-la para o hospital, para que tivesse toda assistência necessária e não sofresse. Além disso, sua neta, que tinha acabado de ter neném morava com ela e achamos melhor separar as coisas para que não afetasse também o processo de amamentação e tudo que envolve um recém-nascido. Que não é pouca coisa!

Assim que chegamos ao hospital, fomos informados que não tinha vaga, no que a paramédica rebateu:

– Não tem agora, mas daqui a pouco tem. Olha, por exemplo, o paciente do quarto 01. Não está bem. Baixa saturação, batimento caindo…vai morrer.

Olhei para o meu marido espantada e ele, mais espantado ainda, arregalou os olhos. Não queríamos matar ninguém!

Depois de uma longa espera conseguimos a vaga e minha sogra ficou internada 5 dias, sendo tratada com morfina para não sentir dor. Até então sua neta não sabia da evolução do caso e sua mãe, minha cunhada, não queria que ela soubesse. Concordamos que seria melhor.

Mas, como esperado, em um sábado lindo e quente no Rio de Janeiro, minha sogra faleceu. Fomos todos para o hospital para realizar os trâmites necessários e meu marido é avisado que ela estava com uma camisolinha velha e precisava de uma roupa para ser enterrada. Pensei em ir até a casa dela buscar alguma coisa, mas a neta ainda não sabia que sua avó acabara de falecer e eu ia ficar em uma saia justa. Eu é que não ia dar a notícia. Minha cunhada liga:

– Tem algumas lojas em promoção no shopping ao lado do hospital, compra um vestido baratinho.

Moleza. Além de escritora, sou também consultora de imagem, então o que mais sei é escolher roupa. Pelo menos achei que sabia. Mas nada tinha me preparado para aquele dia.

E aí, enquanto o meu marido resolvia a papelada do enterro, lá fui eu para o shopping, com a pior incumbência da minha vida. Não sei você, mas roupa de enterro para mim é sagrada. Fui criada em família italiana e católica e minha avó tinha regras duras para roupas. Por exemplo: quando eu usava minissaia e o outro tinha pensamento impuros, a culpa era minha por provocar aquilo. Roupa de ir à missa era especial, mulheres precisavam usar saias e meia calça, blusas fechadas e discretas. Roupa de trabalho a mesma coisa, precisa ser séria, pois o corpo é fonte de pecado…e por aí vai. Mas nas festas elas se esbaldava, era sempre a mais elegante. Um primor dos saltos até o cabelo. Então, você imagina: Se para as funções terrenas ela tinha extremo cuidado, imagina para um evento no céu?

Sim, porque ela acreditava que iria para o céu…Tolinha! O importante era que, para cima ou para baixo, essa era a grande chance de usar o seu melhor traje. Não me lembro como ela foi enterrada…Enfim, fui criada assim e sempre imaginei que a roupa para ser enterrada teria que ser algo, no mínimo, correto.

Voltando a Dona Ivete: Então, para uma senhora de 94 anos, viúva e mãe do meu marido, eu tinha que caprichar. Imagina deixá-la ser enterrada de qualquer jeito? Era passaporte carimbado para o inferno!

Mas quando eu entrei na tal lojinha da promoção, o que encontrei poderia estar no closet de qualquer festival de piriguete: top de lantejoulas, microssaia verde limão, vestidos de onça com fendas até o útero…Será que era a mesma loja que a minha cunhada indicou?

– Posso ajudar?

– Claro! Estou precisando de uma roupa mais discreta…

– Tenho esse pretinho básico fantástico!

Ele era tão justo que só devia sair com acetona.

– Acho que não é bem isso que estou precisando…

– É alguma ocasião especial?

– Pode-se dizer que sim.

Eu não ia estragar o dia da vendedora, já bastava a minha ingrata missão. Resolvi dar uma olhada, já estava lá mesmo. Mas era da prata para o dourado, do pink para a onça, do decote para a fenda em um looping que foi me deixando tonta naquele mar de minis e brilhos.

Ficava imaginando minha sogra vestida com algumas daquelas peças e aquela cena não se encaixava em absolutamente nada. Nem em um baile de Carnaval. Imagina ela chegando no céu para encontrar seu digníssimo marido com um vestido super sexy de onça. Seu Joaquim ficaria, no mínimo, espantado:

– Mas o que é isso, Ivete? Ficaste doida?

– Foi a tal que aparecia lá em casa com o nosso filho que escolheu. Sabia que não ia prestar!

Senti um arrepio e resolvi dar uma volta, respirar e achar algo menos extravagante.

Achei uma boutique já conhecida, mais cara, mas nem titubeei. O que vale é a minha consciência!

– Bom dia, posso ajudar?

– Estou procurando um vestido para a minha sogra.

– Alguma ocasião especial?

Ai, meu Jesus…

– Pode-se dizer que sim.

– Algo em mente?

Pensei: coisas em mente é o que mais tenho nesse momento. Mas me restringi ao:

– Bem discreto, de preferência.

Ela me levou para os pretos, como se a cor fizesse a freira. Todos os pretinhos básicos tinham algo que me incomodavam: ou era um decote nas costas, uma fenda na frente ou ambos. Nunca vi o guarda-roupas de Dona Ivete, mas sabia que nada disso deve ter passado por lá. Pelo menos não nos últimos anos. Não sei se estava conservadora demais naquele dia, mas tudo me soava indecente.

– Algo mais sóbrio mesmo…

Ela me levava para os maiores, como se tamanho fosse sinônimo de censura.

– Tem alguns em promoção também.

Ela devia estar imaginando que o problema era o preço. Mas eu continuava enxergando apenas a minha alma queimando no fogo do inferno. Parecia que nada seria digno da minha sogra, muito menos da minha salvação.

– De qualquer forma, ela pode trocar se não gostar.

– Acredito que não será necessário. Ela vai gostar de qualquer forma.

Juro. Eu não ia estragar o dia de outra pessoa.

Fiquei quase meia hora indo de um lado para o outro, a vendedora aflita atrás de mim e eu sentindo um diabinho no meu ombro e um anjinho no outro, eles se debatendo entre brilhos e seios de fora, o diabinho dizendo que não importava a roupa, ninguém ia ver mesmo, o anjinho se benzendo com o sinal da cruz e pedindo: – Moderação, moderação! enquanto minha sogra só queria ser enterrada. Bem-vestida, de preferência.

Finalmente, depois de todas as onças, decotes profundos, fendas inatingíveis e cores exuberantes, encontrei o melhor vestido de todos. Ele surgia como um oásis no deserto: de um tom sobre tom de verde, com uma estampa discreta de folhagem, todo abotoado na frente e manguinhas até o meio do antebraço. De puro algodão e longo. Fresquinho e leve. Podia perfeitamente ir de um almoço a um lanche da tarde com as amigas. Acho que até fazia parte da paleta de cores da Dona Ivete. Já estava delirando quando a vendedora perguntou:

-Crédito ou débito?

Compra feita, ela ainda me fez o favor de embalar para presente e se despedir, com um sorriso de missão cumprida:

– Depois volta com ela para ver as novidades!

– Pode deixar que eu volto!

Até hoje recebo mensagens da vendedora querendo me mostrar as novidades. Tenho certeza de que um pedacinho do céu eu ganhei naquele dia.

Cheguei no hospital toda satisfeita com o cumprimento do meu dever e meu marido, já desorientado com a minha demora, só queria saber do tal vestido. Entreguei o embrulho chique, ele não entendeu nada, e, enquanto levava o vestido para a derradeira hora, caí no choro. Nunca, em toda a minha vida, escolher uma roupa foi tão difícil. Descanse em paz – e elegantérrima – Dona Ivete!

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